PATAGONIA SESSIONS - PART 2/3

     Logo quando pisei na estação de San Carlos de Bariloche decidi não perder tempo e logo encontrar uma maneira de descer mais para o sul. A cidade estava tomada por turistas e eu encontraria coisas para fazer por dias se me estendesse por ali, mas não era esse o objetivo. Então passei a noite em um hostel e no dia seguinte, ainda pela manhã, fui a rodoviária e comprei uma passagem para El Chaltén que ficava a 1385km mais ao sul, seguindo pela lendária Ruta 40.

     El Chaltén, na provincia de Santa Cruz, é um vilarejo isolado dentro do Parque Nacional Los Glaciares. No inverno esse lugar se torna completamente inóspito e gelado, mas durante as outras estações, pessoas do mundo inteiro são atraídas para lá pelos montes de renome internacional e rotas de trekking que ficam a algumas horas do vilarejo. É um lugar incrível!

     Fazia frio e rajadas de vento gelado deciam pelas montanhas logo acima. Havia apenas uma "rua principal", chamada San Martin, então desci por ela caminhando para ver se encontrava algum lugar para passar uns dias. Como tudo ficava nessa rua, foi fácil e acabei dividindo um quarto com dois japoneses e um inglês em uma aconchegante casa típica de montanha chamada Patagonia Travellers. 

     A noite foi de partilha. Pessoas chegavam das montanhas, normalmente com um sorriso que ligava orelha a orelha, relatando o dia e o que tinham visto e sentido. Todos conversavam entre si e compartilhavam de uma alegria contagiante. Tive aquela sensação gostosa de estar no lugar certo e na hora certa. Em um determinado momento, eu analisava o mapa da região e um barbudo me pergunta, em um inglês carregado de sotaque francês, para que lado das montanhas eu pretendia ir amanhã. Respondi que pensava em ir até a Laguna De Los Tres, nos pés do famoso Monte Fitz Roy. Ele me comentou de outra rota que estava sondando, mas que me acompanharia nessa até o Fitz Roy. Jack Solle é um fotógrafo francês que está viajando toda a América, do Ushuaya ao Alaska e tem um projeto chamado Across America onde mostra o cotidiano dos povos por onde passa e divulga em várias exposições pelo mundo. Irado!

     Pelos dois dias seguintes caminhamos dezenas de quilômetros entre montanhas e vales, compartilhando comida e histórias, alternando nossa conversa entre inglês, espanhol, francês e português. Era nesses momentos que eu pensava que isso era tão valioso quanto horas sentado dentro de uma sala de aula aprendendo alguma língua ou adquirindo qualquer informação. Quanto não aprendi nesses dois dias com a vida, que eu levaria semanas ou meses com alguém me empurrando goela abaixo algum conhecimento baseado em pesquisas superficiais. Eu estava mesmo grato.

     Eu refletia sobre isso enquanto subia a última encosta rochosa antes de chegar a Laguna De Los Tres. Não só entendia como percebia que tudo que sentimos e pensamos nos é devolvido na mesma moeda. Nada de filosofia nisso, é lei, como a gravidade. Então um casal cruza por mim no sentido contrário, ambos com um brilho intenso nos olhos e passos acelerados - Hi, morning! - e gentilmente devolvo o cumprimento, olho para minha direita e enxergo uma única pedra com centenas de metros de altura apontando para o céu como um dedo indicador. Fitz Roy. Minha passada diminui mais ainda, apesar de agora o terreno estar plano. Me sinto tão pequeno. Um sopro gelado no rosto me tira do transe e tudo parece ficar em silêncio. O vento cessa totalmente. Caminho devagar até o lago azul turquesa que se forma abaixo do monte, sinto o calor do sol esquentar meu corpo por um momento, então tiro minha jaqueta, me agacho molhando a ponta dos meus tênis, baixo minha cabeça e um redemoinho se forma a minha frente me envolvendo completamente por dois eternos segundos. Um arrepio sobe dos meus pés e percorre meu corpo, abro os olhos e uma lágrima se desprende. Deixo minha mão direita afundar na água em forma de concha e trago para o rosto um punhado de água gélida, lavando minha face e minha alma. Tava amarradão!

     Era tarde da noite e eu ainda furava bolhas em meus pés. Como na noite anterior, uma galera havia se reunido na sala de estar do hostel para contarmos nosso dia. Então um carioca, chamado Marcos, se aproximou e como éramos os únicos brasileiros ali, logo se sentou a minha frente e me perguntou - Você já foi a um lugar chamado Loma del Pliegue Tumbado? - Enquanto eu balançava a cabeça de forma negativa, Jack ouviu e se adiantou - Eu já ouvi falar muito bem desse lugar - Então naquele momento fizemos uma pesquisa rápida nos mapas da região e percebemos que ficava a algumas horas de caminhada dali, partindo do final do vilarejo em direção ao sul. Eu e Jack nos entreolhamos e decidimos sair no outro dia logo cedo para lá.

     Acordei com a sensação de não ter dormido nada. As bolhas que haviam se formado nos meus pés no dia anterior estavam incomodando bastante e duas novas haviam se formado durante a noite. Saímos de El Chaltén e caminhávamos em uma região árida e pedregosa. Depois de umas 2h caminhando, encontramos uma floresta e então discutíamos sobre a possibilidade do pico que procurávamos ser depois dessa floresta, logo a frente. Isso nos animou e fez apertarmos o passo, já que estávamos subindo constantemente desde o início da caminhada. A mata acaba e um gramado seco e plano se estende a nossa frente. Logo abaixo um bosque imenso se formava e no horizonte um pico rochoso chamava a atenção. Logo percebi que em todo nosso campo de visão, lá seria o único local que teríamos a vista da região que nos foi prometida. Diminuímos a passada, praticamente parando depois que percebemos isso. Então falei - Prefiro caminhar vendo o objetivo dessa maneira. Agora a gente sabe que é lá - Jack me confirmou que pensava o mesmo e sugeriu comermos uma parte do lanche que trazíamos na mochila e bebermos algo antes de seguirmos para o bosque. Aproveitei para tirar meus tênis e aliviar meus pés que estavam deploráveis. Fizemos isso vendo o Fitz Roy ao fundo, mas logo partimos. Após cruzarmos a floresta, enchemos as garrafas de água no último córrego que havia antes de começar a subir.

     Cansado, com dor em todo o corpo, com os pés em frangalhos, olhos ardendo devido a privação de sono e a poeira, a gente se pergunta: Porque fazer isso tudo? Qual o objetivo com isso? Será que é só o visual lá de cima que me atrai? Será que a resposta está lá encima? Será que a resposta para as coisas que nos inquieta na vida está sempre no final de uma experiência, na apreciação final de uma realização pessoal? Cara, eu passei a entender ali que a felicidade está no caminho e não no final. Durante essa trajetória que chamamos de vida encontramos alegrias na superação de cada pequeno obstáculo que nos é imposto. Felicidade não se compra. Eu poderia alugar um helicóptero e pedir para me deixar lá encima se a questão fosse somente o visual, isso me deixaria descansado também e sem marcas no corpo. Mas pensa em quanto a poeira ofuscaria a visão de todos os outros que estariam lá também. Isso é vazio e egoísta.

     A felicidade está na cumplicidade do olhar, no gesto generoso, na compaixão para com o outro, no abraço sincero, nas boas conversas, na família, nos amigos, no trabalho feito com paixão... um passo atento depois do outro, até chegar lá encima, todo mundo junto, se apoiando.

     Há um gozo intimo ao realizar um grande feito, mas sozinho é como abrir uma garrafa de vinho vazia.

PATAGONIA SESSIONS - PART 1/3

     Dessa vez não escrevo aqui pra falar de amor. Vim para contar uma história. Ela que rendeu mais de 100 empolgantes páginas do meu diário pessoal e que mantive por quase um mês de viagem pelas distantes terras da Patagonia, enquanto circulava de carona, de ônibus e barcos, apenas com uma mochila e uma câmera. Percebi que esse relato acaba surgindo em conversas aleatórias com amigos e que mostrei muito pouco ou quase nada por aqui. Então resolvi contar um pouco do que rolou nessa trip e pra isso dividi ela em três partes e no final vou apresentar algo novo que estou aprontando por aqui.

     Cerca de um ano antes, sentado no balcão do Madre Mia, um resto-bar latino na cidade de Pelotas, um amigo me contava da sua vontade de fazer uma viagem solitária de Jeep até o Ushuaya. Contei minhas experiências na região e incentivei a trip durante toda a noite enquanto nos esbaldávamos comemorando o aniversário do bar. Alguns meses se passaram e voltamos a falar sobre o assunto. Ele me convidou para ir junto e o projeto da trip acabou se tornando uma caravana entre amigos. Devido a minha agenda de casamentos para fotografar, preciso me programar para uma viagem assim com certa antecedência e logo que definimos, fechei aquele mês programado e não agendei mais nenhum casório.

     Nossas conversas foram ficando cada vez mais escassas e faltando dez dias para a viagem, sem nada planejado, coloquei em questão se aquilo aconteceria mesmo. Por motivos pessoais eles não poderiam mais ir, mas enquanto conversávamos, vi minha mochila no canto do escritório e decidi ir mesmo assim. Mas eu teria algumas questões que deveria levar em conta, entre elas, a falta de planejamento, o dinheiro reservado para isso era bem limitado e eu teria apenas uma mochila para levar tudo que precisasse para quatro semanas na estrada, afinal, não tinha idéia se faria longas caminhadas e bagagem demais seria um desconforto nesse caso. Por isso teria que me virar com uma câmera e uma lente nesse espaço restrito. Acabei levando uma Nikon D800 e uma 50mm f/1.4, então tudo que vocês vão ver daqui pra frente é com isso. Além do mais, ainda tinha trabalho por fazer antes de pensar em organizar essa viagem. 

     Dez dias. Eu teria que pensar em tudo e colocar todo meu trabalho em ordem nesse tempo, se quisesse sair no primeiro dia de fevereiro. Lembrei de uma conversa que tive com uma amiga argentina na Praia do Rosa, a Vic, onde ela me falou que as linhas férreas que cruzavam todo território argentino, de ponta a ponta, ainda funcionavam, apesar de boa parte estar sucateada ou se manterem com auxilio privado. Pesquisei um pouco sobre isso e logo descobri que um trem misto de passageiros e carga, cruzava o deserto patagônico levando pessoas e coisas de uma cidade chamada Viedma, a 30km do Atlântico, até Bariloche, nos pés das Cordilheiras dos Andes. Isso me pouparia vários dias de viagem e uma grana considerável.

     Anotei tudo e no primeiro dia de fevereiro, exatamente a meia noite, peguei um táxi e pedi para me levar na rodoviária. Já havia comprado uma passagem para Montevideo, no Uruguay e a intenção era sempre andar em direção ao sul, da maneira que fosse possível e aproveitando as oportunidades que fossem surgindo.

     Clareava o dia quando acordei, um tanto assustado, com o movimento brusco do ônibus em que havia passado a noite. Lá fora pequenas casas empoeiradas e uma placa com o nome do lugar: San Carmen Del Patagon. Ainda tentava manter os olhos abertos quando vi uma placa na beira da estrada que dizia - Viedma 2km - Apressado calcei meus tênis e peguei meus fones de ouvido no acento ao lado. Fazia frio. Eram 7h do dia 4.

     Viedma é uma cidade pequena, mas é a capital da província de Rio Negro. Ela fica no início do Deserto Patagonico e a 30km da costa do Atlântico onde pode se avistar colônias enormes de lobos marinhos. Quando cheguei um forte nevoeiro cobria toda a cidade. Fui o único a descer do ônibus e enquanto eu ajeitava a mochila nas minhas costas, ele já partia, me deixando aparentemente solitário em uma rodoviária decadente e empoeirada do interior. Não vi ninguém e resolvi andar para ver o que encontrava. Percebi que logo atrás da rodoviária havia um táxi branco, um tanto maltratado, onde um senhor magro, de bigode e cabelos pretos, dormia com os braços cruzados sobre seu peito. Ele percebeu minha chegada e perguntei se poderia me levar até a estação de trem. Acomodei minha mochila no banco de trás e me sentei ao seu lado. O silêncio do carro era quebrado com o rádio tocando baixo uma milonga argentina e eu via a cidade sumindo no nevoeiro atrás de mim. Logo a frente viramos a direita e vi uma placa de madeira onde estava entalhado - Tren Patagonico.

     Novamente fiquei sozinho, a não ser por três cachorros que vieram me recepcionar logo quando pisei na estação, ainda com minha mochila nas costas. Andei pelos trilhos por uma hora até que avistei alguém na estação que me informou que esse trem estava cruzando o deserto apenas uma vez por semana, coincidentemente isso aconteceria no dia seguinte, mas que ele já estaria lotado fazia duas semanas. Decepção. Expliquei minha situação, falei que viajaria nos vagões de carga se fosse necessário e depois de angustiantes cinco minutos ele me disse que eu poderia dividir com um argentino um quarto com beliche de um dos vagões, em todo o trem seria o único lugar ainda disponível. Então montei minha barraca na beira dos trilhos e lá esperei o outro dia, já com minha vaga no trem.

     Saindo as 18h do dia 5 e pelas 20h seguintes acabei circulando entre todos os vagões, conversei com todo tipo de gente, debati questões econômicas com empresários, filosofei sobre a vida com andarilhos, bebi um vinho com uma senhora de mais de 80 anos, fui convidado para jantar por uma família de argentinos, assisti uma tempestade incrível se deslocando pelo deserto enquanto as cores e as formas da paisagem mudavam a cada instante através das janelas. E então, aquele horizonte que era infinito, gradativamente foi tomando forma até enormes picos rochosos se erguerem nas laterais do trem. Estava nos Andes.

Segunda parte desse relato vou contar na terça-feira, as 20h. Quer acompanhar? Segue lá no Instagram @munchowstudio que no final vai ter novidade para quem for seguidor. Mas é só pra quem seguir lá ein, fica esperto e depois não diz que não avisei. Então acessa ESSE LINK e vai em seguir. 

Between thought and expression lies a lifetime

     Eram 13h do último sábado, quando estava sentado no terraço do Mercado Público de Pelotas, dividia uma cerveja com dois amigos também fotógrafos e calorosamente conversávamos sobre fotografar pessoas sendo elas mesmas, se divertindo e literalmente, fazer subirem pelas paredes. Já dizia Leminski lá na década de 80 - "Espero que todos se divirtam, não há muito mais a se fazer nesse mundo" - e porque seria diferente, né não? Posar para um fotógrafo pode se tornar chato se você não está acostumado, não está vestindo algo que gosta e normalmente costuma vestir, não está em um lugar que tenha qualquer sentido pra você e que te faça sentir bem, com alguém que te faça sentir especial. Não é essa a experiência que você quer guardar né? Também não é a que quero fotografar. Hoje me dedico muito mais a mostrar valores e amores reais do que me preocupar com a estética simplesmente. Bonito mesmo é um gesto autêntico de amor, atenção e carinho pelo outro.

     Nesse mesmo dia havia combinado com um casal de fazermos umas fotos no final de tarde. Laura e Otávio, os dois de Pelotas também, mas que moram em Porto Alegre faz um tempo. Eles vão se casar em uma vinícola próxima a capital, em setembro e queriam fazer algo que marcasse essa época pré-casamento. Depois de conversarmos pessoalmente e pelo Facetime, inspirado também pelo papo de horas antes, saí com esse casal alto astral pela cidade e simplesmente deixei ser. Minha única vontade era de mostrar aquilo que eu tinha entendido dos dois e curtir cada instante junto com eles, apenas observando seus gestos, suas expressões...

     ... e dançamos até o sol se pôr.